Discussão das Questões 817 a 820 do Livro dos Espíritos

Ontem falávamos da forma como Allan Kardec era um homem à frente do seu tempo. Isso porque, sob o auxílio dos espíritos superiores, ele incluiu n’O Livro dos Espíritos uma sessão acerca da “Igualdade dos Direitos do Homem e da Mulher”, o qual teve sua primeira publicação apenas 40 dias depois do trágico evento de 08 de março de 1857, com as trabalhadoras de uma fábrica têxtil nos Estados Unidos que morreram queimadas demandando melhores condições de trabalho para si. Tal incidente, posteriormente, veio a figurar o Dia Internacional da Mulher.

Desse modo, a proposta agora é que possamos analisar as questões desta sessão do L.E, dividindo-as em duas partes: primeiramente da 817 a 820, e amanhã, somente as questões 821 e 822.

817. São iguais perante Deus o homem e a mulher e têm os mesmos direitos?
R: “Não outorgou Deus a ambos a inteligência do bem e do mal e a faculdade de progredir?”

818. Donde provém a inferioridade moral da mulher em certos países?
R: “Do predomínio injusto e cruel que sobre ela assumiu o homem. É resultado das instituições sociais e do abuso da força sobre a fraqueza. Entre homens moralmente pouco adiantados, a força faz o direito”

Nestas questões temos a oportunidade de ver como, enquanto obra básica da Doutrina Espírita, O Livro dos Espíritos se mantém atual. Aí, os espíritos elevados ressaltam a ausência de diferenciação entre os gêneros, uma vez que ambos são dotados das mesmas faculdades: a inteligência e o discernimento que nos leva ao progresso moral.

Ainda, na questão seguinte, se enfatiza as imposições e abusos que nós, mulheres, sofremos enquanto partes vulneráveis, inferiorizadas por um contexto histórico e cultural em que a força e a brutalidade predominam, no lugar da empatia e reconhecimento do outro. Neste âmbito, é importante nos lembrarmos que o abuso da força sobre a fraqueza é derivado de nosso egoísmo, que por sua vez é responsável por uma série de opressões que se perpetuam sistematicamente na história da humanidade: colonizadores sobre colonizados, donos dos meios de produção sobre o proletariado, branco sobre pretos e, finalmente, homens sobre mulheres.

819. Com que fim mais fraca fisicamente do que o homem é a mulher?
R: “Para lhe determinar funções especiais. Ao homem, por ser o mais forte, os trabalhos rudes; à mulher, os trabalhos leves; a ambos o dever de se ajudarem mutuamente a suportar as provas de uma vida cheia de amargor”

820. A fraqueza física da mulher não a coloca naturalmente sob a dependência do homem?
“Deus a uns deu a força, para protegerem o fraco e não para o escravizarem.” Deus apropriou a organização de cada ser às funções que lhe cumpre desempenhar. Tendo dado à mulher menor força física, deu-lhe ao mesmo tempo maior sensibilidade, em relação com a delicadeza das funções maternais e com a fraqueza dos seres confiados aos seus cuidados


Nestas perguntas, é importante observar a forma como as indagações estão marcadas pelo contexto em que foram feitas, ou seja, no cenário cultural do século XIX. Em vista disto, os espíritos respondem Kardec conforme o conhecimento disponível na época, ou seja, com informações restritas ao pensamento contido no cerne dos questionamentos efetuados. Também, o complemento na segunda réplica, que vem depois das aspas, são acréscimos de Kardec, quem, naturalmente, não foge ao seu contexto.

Dito isto, é relevante nos atentarmos para a resposta do item 820. Quando os espíritos respondem que “Deus deu a uns a força”, ele não diz que Deus deu AOS HOMENS a força. Existem fatores biológicos que favorecem a estrutura física masculina para que ela seja munida de força, como uma maior produção de testosterona, por exemplo. Mas, certamente, cada um de nós conhece uma mulher que possa ser considerada forte em detrimento de um homem considerado fraco. As tendências fisiológicas não são deterministas, pois a lei maior é a da necessidade que apresentamos no nosso planejamento reencarnatório, da forma como nossa estrutura corpórea precisa ser.

Da mesma forma, sabemos de mulheres que não são, necessariamente, sensíveis ou maternais, assim como nem todo homem é bruto. Um homem pode ser muito mais cuidadoso com um filho amado do que uma mãe, se esta, talvez por razões reencarnatórias, não o amar. Conhecemos casos de rejeição. Mas podemos considerar que este, além de ser um quesito pessoal e/ou moral, é cultural. Lembremo-nos, neste sentido, das palavras de Simone de Beauvoir, quem diz que “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Com isso existe, então, uma confluência de fatores que influenciam nossa sensibilidade e aptidão à maternidade, mas nenhum a determina.

Finalmente, é importante lembrarmos como nosso corpo é animado por um espírito que porta experiências tanto na feminilidade quanto na masculinidade, e que estas são duas polaridades energéticas da experiência no corpo terrestre que vêm, geralmente, determinadas por corpos distintos com a finalidade de se completarem e se apoiarem mutuamente. O espírito é munido de vida, sentimentos, potencialidades, aptidões e, naturalmente, algumas falhas por se ajustarem, mas o gênero é pertinente à matéria.

Fontes: Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec; Livro dos Espíritos, Allan Kardec.
Autor: Yasmin Almeida - Trabalhadora do Grupo Espírita Vinha de Luz de Belém, Pará, criadora do espaço de debates Feminismo à Luz do Espiritismo no Instagram e integrante da equipe organizadora do I Fórum Espírita da Juventude.

Comentários

Postagens mais visitadas